Segunda-feira, 28 de Fevereiro de 2005
As criaturas na paragem de autocarro
Santa Apolónia, Domingo ao princípio da noite. A paragem de autocarro é também casa de um sem-abrigo, sentado no banco e embrulhado num cobertor, o cheiro do corpo a manter a distância mais ou menos discreta os passageiros que esperam, de pé.
No outro banco, alguns papelões e uma caixa com os haveres do sem-abrigo. Chega um homem de ar gasto e moreno, o sem-abrigo cumprimenta-o: 'Boa noite, engenheiro!'. O outro retribui. Um estrangeiro dirige-se a este, chamemos-lhe o Engenheiro dos Autocarros: 'Rossio?'. 'Rossio' - repete o Engenheiro, corrigindo-lhe o sotaque. 'Pode apanhar o 105. Espere aqui'. Chega o 105, que não vai para o Rossio. 'Olhe, espere, afinal não. Outro, percebe?'. O estrangeiro percebe.
Aproxima-se um arrumador, de ar irritado e bigode farto. Fala muito alto: 'Sabe dizer-me se aqui passa algum para o Martim Moniz?'. 'Passa o 12' - diz o Engenheiro dos Autocarros. O outro verifica os percursos afixados na paragem. 'Mas aqui diz que o 12 vai para a Praça do Comércio. Como é que vai para o Martim Moniz?' Está irritado, parece andar há muito tempo à procura do autocarro que o levará ao Martim Moniz. 'Pois, quer dizer, não vai. Já não vai.' 'Bolas, afinal vai, ou não vai? Ainda agora ia!' - exaspera-se o arrumador. 'É que a esta hora, secalhar já não vai.' - continua o Engenheiro dos Autocarros. O 12 pára, confirma-se que não vai para o Martim Moniz. 'Para o Martim Moniz, tem de apanhar o autocarro do outro lado da avenida.' - esclarece o motorista. O arrumador afasta-se a falar sozinho, zangado com o Engenheiro dos Autocarros. O sem-abrigo levanta-se e sai de casa, deixando-nos a sós com o Engenheiro dos Autocarros: 'É que dantes havia o 35, ora, o 35 não, mas o 12, o 12 vai para o Martim Moniz, mas agora não sei. E o 209, mas o 105 não pára no Cais do Sodre, só no Corpo Santo.' Chega o 105. Na paragem fica apenas o Engenheiro dos Autocarros, a falar sozinho.
A chama das camélias
Não é só no auge da
flor viva que são bonitas.
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Uma coisa que provavelmente dispensavam saber
Sábado, pelas 17h30, em frente ao Rivoli, no Porto: uma gaivota come um pombo morto. O pombo está de barriga para o ar, barriga aberta e vermelha, e o bico da gaivota arranca-lhe carne e vísceras. Mas já ninguém sabe ler as vísceras das aves. Excepto a gaivota.
Sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2005
Quase um post
Digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo, digo, não digo,
Dactilotopografia
Ou o conhecimento dos corpos.
Quinta-feira, 24 de Fevereiro de 2005
Tenha cuidado com o que pisa
Quarta-feira, 23 de Fevereiro de 2005
Leituras: The Blogs Must be Crazy
Recomenda-se,
texto integral de Peggy Noonan no WSJ, 17 de Fevereiro de 2005, sobre a invasão do espaço dos media e do jornalismo tradicionais por alguns bloggers:
"(...)It is not true that there are no controls. It is not true that the blogosphere is the Wild West. What governs members of the blogosphere is what governs to some degree members of the MSM, and that is the desire for status and respect. In the blogosphere you lose both if you put forward as fact information that is incorrect, specious or cooked. You lose status and respect if you take on a story that is patently stupid. You lose status and respect if you are unprofessional or deliberately misleading. And once you've lost a sufficient amount of status and respect, none of the other bloggers link to you anymore or raise your name in their arguments. And you're over. The great correcting mechanism for people on the Web is people on the Web.(...)"
Modo citação: Maria Keil
Aqui é onde vivo agora e é quasi primavera. Vê-se.
Antigamente, isto é, antes, as coisas deste lugar, as pedras, as plantas, os sons, tomavam-me como se de passagem.
Agora vivo aqui. Perceberam que vivo aqui.
Viver num lugar obriga a certas atitudes conjugadas com esse lugar.
Tenho que estar atenta.
Há aqui uma velha glicínia que se finge morta.
Dos velhos troncos da glicínia espreitam-me uma infinidade de olhos e eu tenho que estar atenta.
Eu sei que subitamente, julgando-me desprevenida, ela vai estalar de riso para me perturbar.
Pela manha estará cheia de flores abertas, feliz por me ter enganado fingindo-se morta.
Porque nunca vivi aqui antes e ela floriu para outros cada ano e eu não sei os seus costumes, nem sei como os outros para quem ela floriu antes aceitavam o seu jogo de florir e se ela se fingiu morta cada ano para eles como este ano se fingiu morta para mim, não sei se deva mostrar-lhe espanto.
É uma velha glicínia...
Maria Keil, Árvores de Domingo, Livros Horizonte
A ceia
ao meu avô
Comer meia laranja e
deixar para amanhã
a outra metade -
assim se guarda na boca
durante a noite
o sabor da luz e dos seus frutos
e se pousa
acesa sobre a mesa
a crença de vivermos mais um dia
Segunda-feira, 21 de Fevereiro de 2005
Por fim, a chuva e a sua luz
Ainda a medo, ainda a sós, ainda breve - mas é mesmo a chuva. Não chove nas roseiras porque não há roseiras, mas choveu esta manhã nas flores que vejo desta janela. As nuvens parecem grandes instrumentos de sopro, e hoje, na barra do Tejo, mesmo no meio da largura do rio, por uma abertura passava um feixe de luz. Um rio derramado, todo cinzento, com uma medalha de luz no centro, como uma ferida. Se de repente dali saíssem labaredas, quem estranharia?