Segunda-feira, 6 de Setembro de 2004
Primeiras letras
vspace=3 hspace=5 align=left>Na escola abandonada entra-se (a fotografia engana) pela janela. Já não há contas de multiplicar ou dividir no quadro. Fechou há uns poucos anos, não muitos, e pelo chão ficaram as sobras de algumas décadas de letras, números, sólidos geométricos, enfeites de Natal, caligrafias de pais e filhos, transferidores, lápis de cera, um quadro. Na porta há um papel a dizer 'porta', em letra cursiva; na parede, um papel a dizer 'parede'. Coloca-se a mão por baixo da primeira camada de papéis, de marcadores, de livros, e sentem-se as primeiras letras como uma caixa de surpresas num sótão que não é nosso.
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Modo citação: Cesare Pavese
de Trabalhar Cansa
Atravessar uma rua para fugir de casa
só um rapaz o faz, mas este homem que vagueia
todo o dia pelas ruas já não é um rapaz
e não foge de casa.
Há no Verão
tardes em que até as praças ficam vazias, estendidas
ao sol que vai pôr-se, e este homem que chega
por uma avenida de árvores inúteis pára.
Vale a pena ser-se só, para se estar cada vez mais sozinho?
Percorrê-las apenas - as praças e as ruas
estão vazias. Havia que parar uma mulher
e falar-lhe e convencê-la a viverem juntos.
Doutro modo fala-se sozinho. É por isso que às vezes
vem abordar-nos o bêbado nocturno
e conta os projectos de toda a vida.
Não é certamente ficando à espera na praça deserta
que se encontra alguém, mas quem anda pelas ruas
de vez em quando pára. Se fossem dois,
mesmo a andar pelas ruas, a casa seria
onde está essa mulher e valeria a pena.
De noite a praça volta a ficar deserta
e este homem que passa não vê as casas
entre as luzes inúteis, já não levanta os olhos:
sente apenas o empedrado, que outros homens fizeram
com mãos calejadas, como são as suas.
Não é justo ficar na praça deserta.
Anda certamente na rua aquela mulher
que, rogada, havia de querer dar uma mão à casa.
(da edição da Cotovia, que não tem online a informação sobre o tradutor - logo acrescento...)
Sexta-feira, 3 de Setembro de 2004
Jardim de Sombras na Fábrica da Pólvora
border=_new width=250 heigth=230 align=left>Quando caminhamos por um jardim temos tendência a observar todos os seus elementos, ignorando o facto de que cada um deles tem uma sombra. Quando caminhamos pelo Jardim de Sombras temos tendência a observar todas as suas sombras, ignorando o facto de que cada uma delas deriva de um elemento. Carole Purnelle e Nuno Maya desenvolveram o seu último trabalho através da observação e extracção das sombras do mundo real, manipulando-as e organizando-as num mundo representado apenas por sombras: o Jardim de Sombras.align=right width=177 height=197>No Verão passado, Nuno Maya e Carole Purnelle tiveram, também na Fábrica da Pólvora, a exposição
As Criaturas. Os visitantes podiam compor 'criaturas' a partir dos objectos ou pedaços de objectos da exposição, usando as imagens digitalizadas e recorrendo aos computadores disponíveis - o boneco ao lado é uma delas, podem ver as galerias
aqui. (Os visitantes eram quase só pais com criancinhas - tive de disputar o computador a alguns meninos e meninas dos seus quatro anos, daqueles que ficam de forma persistente encostados a nós, à espera...). Consta que nesta exposição do Jardim de Sombras vai ser possível fazer também algumas brincadeiras.
Inauguração amanhã.
Quinta-feira, 2 de Setembro de 2004
As criaturas: se tu visses o que eu vi
Os da música são dois. Estão em frente a uma esplanada cheia de turistas, o espectáculo já está montado quando eu chego. Assumindo o protagonismo, o cantor, de uns 40 anos, ar de rufia de Marvila, muito moreno, magro, camisa e cabelos negros a precisar de um corte, patilhas como a proa de um navio. Atrás, quase encostado à parede, o outro, de uns 60 anos e menos de um metro e meio, forma arredondada como um pequeno barril, toca guitarra. O mais novo mexe o corpo e a expressão do rosto em solavancos breves, ao ritmo da música, assumindo plenamente a atrapalhação de que a letra dá conta:
Como é que eu hei-de
Como é que eu hei-de
Como é que eu hei-de
ir embora
Com as perninhas
todas à mostra
e os marmelinhos
quase de fora.
Depois há os outros, que não sei se fazem parte da trupe - creio que chegaram depois e sentiram o chamamento.
Um outro homem na casa dos 60 anos, ao lado do cantor, abanando-se ao ritmo da música, vai cantando o refrão e sorri com mais vontade quando chega à parte dos marmelinhos. Uma anã vestida de branco - mini-saia, ténis e camisola de alças, boné da mesma cor, cantarolando também, mas mais séria. Mais atrás, encostados à parede, um casal de namorados, ele de garrafa de cerveja na mão, cantando alto e alegremente, ela com três rosas em invólucro de plástico individual. Aconchegam-se, riem, estão felizes. Há ainda os turistas - riem também, levantam-se, aproximam-se, alguns deixam a moeda no saco da guitarra estendido no chão.
Vem um homem que pousa no chão uma estatueta de uma figura vagamente clássica a imitar mármore e dois candelabros de ferro antigo fingido. Um bêbado de barba grisalha e mal feita aproxima-se, planta-se entre a esplanada e a trupe, solta três gargalhadas e começa a dançar, saltitando em frente dos outros.
Como é que eu hei-de
Como é que eu hei-de
Como é que eu hei-de
ir embora
Agora é a vez de entrar o rapazito pedinte de cara suja, o acórdeão debaixo de um braço e o cão raquítico que segura o balde das esmolas debaixo do outro. Não diz nada, não faz nada, fica só ali.
Os turistas sorriem, olhando a um palmo de distância o ecrã das máquinas de filmar digitais. Mais dois ou três curiosos observam, de sorriso incrédulo.
A cantiga (Como é que eu hei-de, Como é que eu hei-de...) está a acabar e os da música olham-se, a pensar em qual será a próxima. O bêbado decide implicar com a anã, atira-lhe o boné ao chão e ri-se da graça. Ela não gosta, dirige-lhe algumas ameaças em voz grossa e simula que vai atirar-lhe à cabeça a estátua a imitar mármore.
Nada disto, penso, pode ter sido por acaso. Alguma força fez convergir para aquele ponto do mundo esta gente, cada um saído do seu filme, cada um prestes a regressar ao seu filme. O cantor de ar cigano, o velhote guitarrista, o casal apaixonado, o bêbado, o vendedor de sucedâneos, o pedinte com o cão, a anã. E os turistas.
Efeitos da chuva
O silêncio pesa mais no parapeito da janela, medido centímetro a centímetro. Toma-se nota do valor na pedra calcária, com giz. As folhas em branco são espessas e não deixam ver as formas para além do vidro. As palavras esdrúxulas tombam de certas conversas e é incómodo senti-las restolhar sob os nossos pés. Ninguém já sabe para que servem essas conversas, e perderam-se algumas palavras que permitiam falar nisso.
Insisto em que comecemos Setembro com pudor. Sobretudo, que não se fale em recomeços.
Quarta-feira, 1 de Setembro de 2004
Notícia do Público para portuenses: Cinema Passos Manuel Reabre em Outubro
E eventualmente com programação da Cinemateca.
Notícia aqui.E até há planos para o Batalha!
Como começar Setembro?
Com pudor.