Sábado, 6 de Dezembro de 2003
Há alguém a subir as escadas
Estou sentada, de costas para as escadas. Há pouco ouvi um barulho lá em baixo - a minha gata esqueceu por momentos a sua tarefa interminável de amassar no meu colo uma massa de pão que existe algures na sua cabeça, uma receita cujos ingredientes prefiro nem imaginar - devagar, como seria de esperar do prazer caseiro de um gato - e espetou as orelhas na direcção dos degraus. Foi um barulho, e nada mais, penso eu, mas espreito, pelo sim, pelo não. Não é ninguém.
Já passou - há algum tempo - e então porque continuo eu a sentir a sombra que sobe as escadas? Está perpetuamente a subir as escadas; sempre que penso nela (basta um segundo de silêncio, qualquer coisa que quebre o ritmo da tarde, para que eu pense nela) sobe as escadas, como se as escadas crescessem do centro para as extremidades, criando sempre novos degraus - como se os degraus nascessem de cada novo passo seu. Sempre nos mesmos degraus, e sempre a aproximar-se de mim, passo a passo, sem um ruído, apenas uma presença que aperta o ar de encontro às minhas costas. A escada está escura, mas, se eu virar a cabeça, consigo ver a sombra que se afunda em direcção aos primeiros degraus. Daquela sombra pode nascer qualquer coisa, daquela sombra e de um pequeno ruído que até a minha gata estranhou. Eu fico, sentada, toda a tarde, a ler, a escrever, a desenhar remoinhos no pelo de Inverno do bicho, de costas para as escadas.